Mineiro planta o milho e cria o porco. O porco come o milho e o mineiro come o porco.
A deliciosa culinária da Capitania foi evoluindo até ganhar, nos dias atuais, o merecido status de gastronomia mineira - uma das mais ricas, saborosas e apreciadas de todo Brasil. Em cada região do Estado, delícias de todo tipo são especialmente preparadas para as mais diferentes ocasiões, afinal, o mineiro é hospitaleiro por natureza e não perde a oportunidade de compartilhar mesas preciosas e fartas.
Tradicionalmente, a cultura mineira é marcada pela convivência familiar, pela religiosidade, pelas inúmeras festas e a reconhecida hospitalidade. Nas festas, familiares, amigos e visitantes se juntam para rezar, brincar, cantar e comer. Comer até se fartar. Vivenciar essas festas só faz sentido quando se experimentam os deliciosos e variados pratos da culinária típica, com seus ricos ingredientes e temperos. A gastronomia é, portanto, um dos principais valores da cultura mineira. Importante ressaltar que os pratos da culinária típica de Minas não se restringem aos restaurantes. Ao contrário, fazem parte do cotidiano e dos lares do povo.
Influência da mineração na gastronomia de Minas Gerais
A formação dos primeiros núcleos urbanos de Minas Gerais ocorre com o Ciclo da Mineração. Na década de 80 do século 17, a atividade mineradora já estava estabelecida às margens do Rio das Velhas (região de Sabará). Em 1698, descobrem-se no Riacho Tripui (região de Ouro Preto) o finíssimo ouro paladiado, popularmente chamado de ouro preto. A notícia da descoberta do metal precioso se propaga e aventureiros de toda condição acorrem para a região, dando início a primitivos aldeamentos de mineradores. Um novo processo histórico, político e social tem início na região das minas, mais precisamente na região conhecida como Sertão dos Cataguás. De Portugal e das áreas litorâneas da Colônia para o seu interior, os aventureiros corriam os riscos do percurso para passar a viver as duras condições do lugar, com alimentação pobre, cara e precária, e muitas vezes, a fome.
Conforme registros, no período da mineração, o povo nas Minas Gerais nunca conheceu a fartura de alimentação. Muitos morreram de fome com as mãos cheias de ouro. "Há quem diga que a abundante cozinha mineira surgiu da fome." Tamanha era a falta de produtos de primeira necessidade. Com o tempo totalmente dedicado à atividade mineradora, e sem terras adequadas ao plantio, plantava-se e criava-se muito pouco e o produto escasso das roças era caro. Sal, farinha, feijão, açúcar, galinha, milho e aguardente eram caríssimos, assim como o fumo, as drogas medicinais, armas, ferramentas, tecidos, calçados e muares. "O alimento básico da maioria da população achava-se no milho e na mandioca." Os escravos, que figuravam entre os bens de maior valor na Colônia, viviam em condições infra-humanas e eram os que mais sofriam com a pobreza da alimentação e a fome.
Tal era a carência de mantimentos que o mineiro foi, aos poucos, aprendendo a superar os limites na alimentação. Criava com o que tinha e toda novidade logo lhe servia de adereço para, então, recriar, suprir e, até mesmo, agradar. Assim, a fome ou a comida insossa dos primeiros tempos foi a responsável pela deliciosa cozinha mineira de hoje, com tamanha diversidade de pratos, fruto da criatividade e habilidade, e cujo sabor a faz transpor nossas fronteiras.
Entre 1698 e 1701, no auge da fome, a escassez de suprimentos veio a provocar a dispersão dos mineradores. "Muitos abandonaram as minas com seus escravos e fugiram para os matos a sustentarem-se com frutas agrestes que nele acharam." Ao migrarem para outras regiões, algumas vezes acabaram por encontrar novos veios auríferos e a iniciar novos povoamentos. A configuração político-administrativa desses povoados e sua organização enquanto vilas exigia a presença dos homens do serviço público. Com isso, avolumava-se a população e cresciam as necessidades de toda ordem.
Durante séculos, a Colônia se manteve fechada a estrangeiros. A região das Minas, principalmente, era submetida a um rigoroso controle, o que encarecia muito a chegada de mercadorias. Tudo era caríssimo devido às péssimas condições de acesso, à precariedade dos meios de transporte, à falta de moedas - que dificultava as trocas comerciais -, e à multiplicidade de tributos que incidiam sobre as mercadorias importadas. Entretanto, para evitar a crise e o êxodo dos mineradores, e consequentemente, manter a arrecadação dos impostos, a Coroa Portuguesa procurou melhorar o abastecimento da área, determinando a abertura de um novo caminho de comunicação direta com o Rio de Janeiro, que até então, se fazia apenas por São Paulo ou pela Bahia. Do Nordeste, pelos caminhos do Rio São Francisco, os mineiros importavam gado vacum e escravos africanos, e da Europa, manufaturados diversos. Das capitanias do Rio de Janeiro e São Paulo, importavam o fumo, doces, frutas, legumes, carne seca, dentre outros produtos.
Ao longo do século 18, com a presença de índios, nordestinos, portugueses e escravos africanos, a Capitania das Minas Gerais já assimilava elementos culturais que moldariam a sua identidade. Aos poucos, os mineiros iam conformando seus vilarejos e incorporando outros valores, saberes e fazeres, que influenciavam os costumes, a religião, a política, a moradia, as artes, os hábitos e condições alimentares.
Na alimentação, as contribuições dos índios que aqui viviam foram suas habilidades na caça e coleta, no cultivo da mandioca, milho, abóbora e amendoim. Da mandioca, faziam a farinha, o beiju e as bebidas alcoólicas.
Os negros, por sua vez, "adeptos da caça, incorporaram à sua dieta os animais a que tinham acesso, como tatus, lagartos e capivaras. A cozinha africana privilegia os assados em detrimento das frituras. Assim, o caldo é um item importante, já que provém do alimento assado ou simplesmente preparado com água." (Culinária Mineira - Tradição e Saúde, SESC MG). Com os negros vieram também a banana, o café, a pimenta malagueta e o inhame.
De suas colônias africanas e asiáticas, o colonizador português trouxe frutas e legumes, a exemplo da manga (Índia), quiabo (África) e couve (Portugal). Eles trouxeram também galinhas, gansos, patos, gado, arroz, cana de açúcar, trigo, cebolinha, alho e laranja. No tempero, eles dão sua principal contribuição: além de impor o gosto pelo sal e ensinar a salgar a carne para conservá-la, trouxeram consigo o cravo, a erva-doce, a canela e o alecrim.
Assim, temperos e alimentos foram incorporados às cozinhas e, habilidosamente, o povo enriquecia a culinária da região, passando as receitas de pais para filhos. Apesar de hoje o mineiro comer muito mais arroz do que feijão, este e o angu foram durante muitos anos os alimentos básicos da população de Minas.
Um interessante panorama do que se tornou a tradicional cozinha mineira no século 19 é apresentado por Eduardo Frieiro, em Feijão, Angu e Couve. Segundo o autor, "não cremos difícil imaginar o que comia, comunmente, a classe mais arranjada de Ouro Preto, constituída pela maior parte das profissões liberais, clero, comerciantes e funcionários públicos. Figuremos o seguinte:
Ao desjejum: prato de mingau de fubá, simples, polvilhado de canela, com melado ou pedacinhos de queijo; ou café com leite e quintanda; ou café com leite e pão com manteiga.
Ao almoço: feijão, podendo ser tutu de feijão com torresmos, com linguiça ou lombo de porco; ou feijão simples e, às vezes, com couve, ou virado com farinha de mandioca ou de milho; angu, simples, ou com torresmos, quiabo, arroz branco, solto; carne de vento ou de porco, fresca ou salga, e, mais raramente, carne fresca de boi; verdura, pouca, podendo ser couve, alface, repolho, serralha, taioba. Sobremesa: marmelada ou goiaba, melado, ou outro doce, com queijo ou requeijão fresco. Bananas, laranjas, ou mamão.
Merenda: café simples, ou acompanhado de quitanda.
Jantar: sopa, podendo ser de legumes, de carne com farinha de milho, de cará ou inhame, de mandioca, de feijão branco, de fubá com ervas; feijão simples ou virado com farinha; ensopadinho de carne com quiabo, ou com jiló, mandioca ou batata doce; arroz com ovos estrelados. Sobremesa: doce com queijo ou requeijão fresco.
Ceia: canjica, ou mingau de fubá ou leite com angu. A canjica podia ser simples, ou com amendoim, ou com queijo."
De acordo com Frieiro, essa composição variava com as posses e o gosto de cada um. Mas, ao almoço, o angu era obrigatório. Com fubá e couve preparava-se o
Maneco-sem-Jaleco, papas mais simples que as portuguesas. Com a sobra, preparava-se a Roupa Velha, também feita de carne seca desfiada em mistura com farinha de mandioca, e às vezes, batatinhas. A gordura de porco era a usual. A cebola sem cabeça, cebola de cheiro, alho, urucu, coentro e as pimentas malagueta e do reino eram os condimentos habituais.
A carne seca, assim como a fresca, de boi ou porco, era preparada de variadas maneiras: assada; ensopada com arroz, ou com mandioca, ou com couve, ou com palmito, ou com inhame, ou com vagens; picadinha, da mesma forma; frita, com ovos batidos, ou desfiada, em forma de Roupa Velha; cozida com legumes.
Como bebida, um copinho de restilo ao início das refeições era servido, mas só para os homens. Pouco se usava o vinho, a não ser na consoada ou nas festas. Em bailaricos e demais reuniões familiares, servia-se de aluá e capilé.
Como os brasileiros em geral, os mineiros sempre apreciaram doces e quitandas. Da tradicional doçaria luso-brasileira, o doce de leite, de cidra, limão e laranja, a brevidade, o pé de moleque, a pamonha envolvida em folha de bananeira, a queijadinha, a mãe benta, o quebra-quebra, a broinha de fubá mimoso ou de amendoim e o biscoito de polvilho eram os preferidos. Os doces de leite enrolados em palhas de milho são, dentre todos, os mais autênticos.
Enfim, de acordo com Eduardo Frieiro, dentro dos padrões da cozinha mineira - variada, saudável e de fácil digestão - esse é o trivial alimentar das famílias mais arranjadas. As donas de casa não conheciam a ciência da alimentação (que ainda não dava sinal de si), mas faziam sucesso na arte culinária, o que tinha muito mais valor. No cenário da gastronomia mineira, o fogão a lenha, o tempero de alho e cebola, o café, as quitandas, o queijo mineiro e a boa conversa estarão sempre presentes.
A partir da segunda metade do século 19, chegam à província de Minas Gerais os imigrantes estrangeiros, e com eles, novos hábitos alimentares. O uso do macarrão, por exemplo, só entrou habitualmente na cozinha dos lares mineiros a partir da década de 70, com a chegada do imigrante italiano. Outro exemplo é o pão durante a refeição. Ele é quase estranho à cozinha mineira tradicional. Hoje, sua generalização nas melhores mesas ainda tem sido lenta.
Mais tarde, novos ciclos econômicos dão início a processos de povoamento em outras áreas. Hoje, essas áreas se configuram em sete regiões culturais: Região Cultural do Nordeste Mineiro; Região Cultural da Mineração; Região Cultural do Vale do São Francisco; Região Cultural da Zona da Mata; Região Cultural Café Sul; Região Cultural do Triângulo Mineiro; Região Cultural Urbano-Industrial (compreende as áreas urbano-industriais do Estado com mais de 180 mil habitantes).
As características culturais de cada uma dessas regiões de Minas Gerais decorrem de seus aspectos físico-geográficos e de seus respectivos processos históricos de povoamento, com notória influência na arquitetura, nas artes e nas manifestações folclóricas, e por excelência, na culinária típica. As influências regionais na gastronomia mineira merecem cada vez mais atenção e pesquisa, considerando-se a dimensão territorial do Estado e a diversidade presente na cultura mineira.
Bibliografia
FRIEIRO Eduardo. Feijão, angu e couve: ensaio sobre a comida dos mineiros. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1982.
BASTOS Claudilene Cristina Bering. Culinária Mineira - Tradição e Saúde. Belo Horizonte: SESC Minas Gerais, 2009.
ROMEIRO Adriana, BOTELHO Ângela Vianna. Dicionário Histórico das Minas Gerais. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.
Fonte: descubraminas.com - SENAC